Com a entrada de um novo ano, surgem os primeiros ecos dos principais festivais internacionais e de grandes concertos realizados em salas importantes, um pouco por todo o mundo. Desta vez, estaremos durante algumas semanas no Festival Jazz Baltica (em Bad Salzau, na Alemanha) para ouvirmos alguns grupos de primeiro plano formados com a colaborações de destacados solistas de vários países, a comprovar como o jazz é uma linguagem internacional.
É com a mesma brutalidade com que, através de voz amiga, a recebi que dou a triste notícia aos regulares visitantes deste sítio e a todos os amadores de jazz portugueses: esta madrugada, um incêndio pelos vistos fatal destruiu o prédio onde se localizava, na Praça da Alegria em Lisboa, a cave do Hot Clube de Portugal, um dos clubes de jazz mais antigos do mundo e, seguramente, o que há mais décadas se encontrava em actividade regular contínua.
A emoção com que dou esta notícia – mesmo que, neste momento, ainda não saiba se o clube ficou irremediavelmente inutilizado, como tudo leva a crer – é a emoção de quem lá passou alguns dos melhores momentos do seu lazer e da sua vida e de quem vê desaparecer um pedaço da (sua) História.
Actualização (23.12.09): Passei por lá ontem e afinal as notícias não são tão radicalmente desoladoras (a cave não ardeu, ficou "apenas" completamente impraticável pela água utilizada pelos bombeiros) mas o resultado final é infelizmente o mesmo. O velho recinto do Hot está inutilizável e nunca será o mesmo! Espera-se a conjugação de algumas boas vontades para erguer outra vez, em novas e melhores condições, este lugar de cultura e esta sala histórica de Lisboa.
Antes que seja tarde e antes que a falta de tempo ou de imaginação lhe impeçam de dar aos que lhe são mais próximos lermbranças de Natal que se vejam (ou se ouçam!), aqui lhe deixo quatro sugestões para gostos vários.
Em primeiro lugar – e sobretudo porque se trata de gravações inéditas, nunca antes publicadas e directamente remasterizadas a partir dos originais que Richard Seidl “desenterrou” dos arquivos da Universal, às quais voltarei oportunamente em emissão especial de Um Toque de Jazz (Antena 2) –, aqui tem o leitor uma caixa de sonho, intitulada Twelve Nights in Hollywood, na qual está reunido, em quatro CDs, todo o material gravado em 1961 e 1962 no clube Crescendo de Los Angeles (cerca de 80 faixas!!!) pela grande Ella Fitzgerald, longe das grandes audiências e num ambiente de grande intimidade em que a arte inconfundível de Ella se encontra num pico de forma excepcional. Indispensável.
Se a sua opção, em termos de vozes do jazz se inclinar mais para o dramatismo inseparável do canto bem mais vivido de Billie Holiday, então o conselho não pode deixar de ir para The Complete Commodore & Decca Masters, certamente já objecto de anteriores reedições com várias lógicas musicológicas mas que, neste caso, têm a vantagem de reunir, numa única caixa de três CDs, apenas os masters que constituem o espólio completo (1939/1950) que a grande cantora nos deixou nas editoras Commodore e Decca. Trata-se, em alguns casos, como se sabe, de verdadeiras obras-primas não só devidas ao talento e à personalidade única de Billie como à arte instrumental de grandes mestres que a acompanham.
Num outro registo, puramente instrumental – no qual a descontracção, a musicalidade, a imaginação e o swing solto e natural de Oscar Peterson, sustentados e impulsionados pelos contrabaixos de Ray Brown e Major Holley, se revelavam em pleno, pela primeira vez, aos madores de jazz norte-americanos – as gravações em duo para as editoras Clef e Mercury e datadas do período compreendido entre 1949 e 1951 foram as primeiras através das quais o grande mestre canadiano se tornava conhecido nos EUA e antecedem cronologicamente aquelas que, publicadas em trio entre 1951 e 1953 para as mesmas editoras, já foram reeditadas pela Mosaic. Mas só o registo (1949) realizado no Carnegie Hall (CD 1) seria motivo suficiente para tornar imperdível esta reedição!
Finalmente – e escapando à lógica da reedição – o último opus a solo conhecido de Keith Jarrett acaba de ser publicado pela ECM, sob o título Testament. Trata-se de duas esplendorosas actuações gravadas com 5 dias de intervalo em Paris (Salle Pleyel, 26.11.08) e Londres (Royal Festival Hall, 01.12.08), nas quais, tocando sobretudo originais – alguns compostos previamente, outros fruto da “composição espontânea” organizada no próprio momento de tocar e ainda outros nascidos da livre improvisação – se consegue ter uma visão quase integral da arte tão especial deste excepcional músico: o profundo “americanismo” da sua música, o swing intenso ou a invenção repleta do maior classicismo, os arrebatamentos líricos ou o touché mais delicado e sensível e, sobretudo, a explanação minuciosa (que se deixa desvendar ao voyeurismo da nossa escuta) do verdadeiro acto de criar, em meio de um conflito interno e pessoal que as liner notes do próprio Jarrett ajudam a compreender.
Pela minha parte, resta-me desejar-lhe Boas Festas e, se possível, um melhor Ano Novo! Até ao meu regresso no início de 2010!
foto: Lourdes Delgado
Pode ter um “cheirinho” de como será o próximo disco (já comprável online) do guitarrista Kurt Rosenwinkel, se ouvir esta versão de Reflections (Thelonius Monk) que, aliás, dará o título ao disco.
Foi gravado em trio – com Eric Revis no contrabaixo e Eric Harland na bateria – e, depois de uma mão cheia de discos fabulosos dedicados aos seus originais, este novo opus explora o inesgotável universo dos standards. Quem diria?
Reflections é o primeiro CD da nova editora do próprio Rosenwinkel – Wommusic – e pode ser descarregado em formato MP3, AAC ou FLAC, trazendo consigo um PDF com a capa e outros materiais.
Fotos: cortesia de Rosa Reis
“That’s all we know!” Foi com este “achado”, tão consciente e revelador do natural peso simbólico e histórico que os cinco componentes do Cascais Jazz Legends deixaram sobre o palco, que um mestre da estatura de Phil Woods se despediu, em nome de todos, no final da última peça de um repertório deliberadamente familiar e celebratório com o qual se encerrava a recente 1ª. Edição deste novo Cascais Jazz. Um festival regressado pela vontade e carolice do decano produtor Duarte Mendonça que durante tantos anos coadjuvou Luiz Villas-Boas na responsabilidade de direcção do primeiro e saudoso período de vida deste importante evento na história do jazz português.
Uma das primeiras perguntas que naturalmente se terão colocado ao espectador ocasional ou ao amador de jazz mais fiel ao passado e ao significado do Cascais Jazz talvez tenha sido a de saber se o elenco escolhido para este comeback seria o mais indicado para uma tal celebração. Recusando-me a apontar o dedo acusador de um desajustado hipercriticismo, manda a razoabilidade reconhecer que tanto o trio de Dena DeRose como o Quinteto de Ingrid Jensen (independentemente das qualidades demonstradas e já conhecidas de ambas as líderes) não apresentavam, logo à partida, argumentos absolutamente indiscutíveis alicercados em carreiras cujo peso justificasse a sua presença, precisamente por se tratar do ano de regresso deste festival em concreto, com a indelével marca de referência ao longo dos anos criada no nosso panorama musical.
Não deixa de ser significativo, a propósito, que o próprio Duarte Mendonça – sabedor disto, mais do que qualquer outro – como que tenha deixado escapar, no editorial do programa, esta espécie de reserva premonitória: “Espero não ser ‘crucificado’ pelo elenco honesto, mas de qualidade, que me proponho apresentar-vos (...)”.
A verdade é que, com um pouco mais de audácia da sua parte e se bem acompanhado pelo esforço e compreensão dos patrocinadores envolvidos, teria sido quiçá possível incluir, como solistas convidados, outras personalidades musicais ainda vivas e à altura da celebração de um festival no qual já tivessem deixado o rasto da sua musicalidade. Tal como inteligentemente foi feito, aliás, nos dois primeiros concertos deste Cascais Jazz com a inclusão isolada e simbólica de figuras como Lee Konitz ou Jack Walrath.
Seria, entretanto, altamente injusto e redutor ficarmo-nos por estas reticências e esquecermos o que de bom aconteceu no renovado Cascais Jazz deste ano.
A começar pelo já referido Lee Konitz que, a exemplo do que há já alguns anos Phil Woods fizera na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, resolveu dispensar microfones e realizar um concerto inteiramente acústico, excepção feita à comedida amplificação (em palco) da guitarra de André Fernandes que, quanto a mim, foi chamado demasiado tarde à ribalta.
[A propósito de microfones, referência positiva tem de ir para a excelente e sensata captação sonora a que já nos habituou o engenheiro de som Jorge Gonçalves]
Utilizando como lhe é habitual uma linguagem altamente abstracta, rarefeita e despida de malabarismos tecnicistas, preferindo sempre “sugerir” (muito mais do que “impingir”) as suas frases musicais aparentemente “indecifráveis” e “dispersas” mas tornando progressivamente mais nítido o puzzle melódico das improvisações, Konitz demonstrou a maestria impoluta da sua criatividade, certamente traído aqui e ali pelo peso dos anos, mas deixando claro tratar-se ainda de uma das figuras mais importantes de todo o jazz.
Do trio que o acompanhou (melhor dizendo que o completou) na decifragem daquilo que invariavelmente começava por ser incógnito, o pianista Florian Weber exibiu uma segurança e mobilidade harmónica inteiramente à altura dos desafios do mestre e integrando-se da melhor maneira nos amplos espaços e silêncios que aquele lhe deixou à disposição; tal como, mais tarde, o faria André Fernandes, na sua participação em Body and Soul ou numa paráfrase de Out of Nowhere, entre outras, tudo terminando com um clássico do bebop em atmosfera bastante cool, como seria de esperar. Para trás ficara, ainda, o mistério da “construção em progresso” de Solar, de All The Things You Are ou de uma outra paráfrase com a marca de Tristano, cuja memória também perpassou pelo palco.
Dos três concertos realizados no sábado, segundo dia do festival, aquele que reuniu o Zé Eduardo Unit ao convidado Jack Walrath foi, sem dúvida, o que proporcionou momentos mais intensos de fruição musical. Diga-se, desde já, que a presença do contrabaixista e compositor não deixou de representar, da melhor maneira, a memória portuguesa do festival. E mesmo sem esconder que tanto Bruno Pedroso como Jesus Santandreu às vezes me pareceram, aqui e ali, algo tímidos e irregulares (problemas nada habituais no seu jogo instrumental mas que acontecem aos melhores, nesta música-sem-rede que o jazz sempre é) bastou o gozo swingado e estentórico com que Zé Eduardo habitualmente se entrega à guarda implacável do tempo e à sua simultânea subversão (a par do som a madeira que sobressai do registo grave do seu contrabaixo), para que o concerto estivesse “resolvido”.
A somar-se a esta base indispensável, Jack Walrath explanou com a maior das evidências o que é tornar simples as coisas complicadas, o que tem de ridículo o adjectivo mainstream quando aplicado a uma música de modernidade intemporal como esta, bem como a grande escola da arte que foi ter frequentado (quantas vezes com funções de responsabilidade) as melhores companhias, como a de Charles Mingus. Além do mais, Walrath recordou-nos ainda (como se o resto não bastasse) a cultura acumulada do jazz, o sigificado dos blues e ainda o que é a “velha” sonoridade aberta, franca, quando necessário rude e “imperfeita”, de um trompete que se oiça (!), como na noite seguinte faria, de um outro modo, Lew Soloff.
As duas presenças fenininas no festival, para além do que de agradável a sua condição naturalmente implicava, teve resultados díspares e opostos. Enquanto que a simpática performance de Dena DeRose – melhor a explorar o teclado do que a fazer valer a sua voz – nos permitiu fruir de um balanço solto, natural e agradável, sobretudo transmitido pela contagiante bateria do sempre bem disposto, disponível e influente Matt Wilson, o concerto "engendrado" por Ingrid Jensen foi dos menos conseguidos que já lhe ouvi até hoje.
A trompetista canadiana apresentou-nos várias passagens de uma suite cuja inspiração lhe surgiu (tal como explicou) durante a sua viagem de lua de mel ao Alaska. Mas a configuração das composições de Ingrid Jensen pareceu-me artificialmente complexa, não soando nem natural nem lógica (antes forçada) a sucessão de secções no interior de cada peça ou a contraposição de padrões rítmicos diferenciados e, sobretudo, tornando-se altamente perturbadora (assim, à nossa frente, à vista desarmada) a constante e doentia movimentação de Ingrid na manipulação de botões e de efeitos nos pedais que se estendiam s seus pés (descalços), os quais não contribuiram afinal para uma diferenciação sonora ou tímbrica particularmente excitante ou recompensadora. E nem sequer o notável Geoff Keezer (piano) pôde dar largas à sua criatividade, tão preso à partitura teve de estar. Enfim, um concerto em que nada se passou, à excepção certamente das memórias de viagem (tornadas música) da própria trompetista, com o marido-baterista ali mesmo à mão... [Como devia fazer frio, no Alaska!]
Domingo estava então reservado para o final em grande do festival, um final em plano muito elevado e, ainda por cima, valorizando o que de melhor pode acontecer quando se encontram em palco este tipo de grupos, porque jamais caindo no que de mais “perigoso” pode também estar presente nesses encontros.
Nunca se contentando com o mero cumprimento dos “serviços mínimos” e fazendo a todo o momento valer o importante contributo individual de cada um, os cinco mestres que constituiram o denominado Cascais Jazz Legends, foram de uma entrega à música comovente e entusiasmante e de uma competência e interacção musical que pede meças a tantos outros “all-stars” encomendados e desempacotados à pressa, precisamente porque escaparam com seriedade ao carácter meramente exibicionista que a preguiça e a imaturidade musical por vezes trazem consigo.
I’ll Remember April, Ow!, Without a Song, If You Could See Me Now, Woody ‘n’ You ou Willow Weep For Me (“played without getting emocionally envolved”... Phil Woods dixit) foram, entre outras, peças-chave de um repertório pelo qual passou o peso acumulado da sabedoria de cada um dos intervenientes, desde a delicadeza e apropósito dos comentários de Cedar Walton no teclado, até à regularidade rítmica de Jimmy Cobb na bateria, passando pelo inesperado fôlego e intensidade emocional de Phil Woods no sax-alto (como se sabe lutando contra dificuldades do foro respiratório), o tempo metronómico de Rufus Reid no contrabaixo ou os salientes cambiantes da sonoridade de Lew Soloff no trompete.
Uma actuação de cinco grandes músicos, perfeita e à exacta medida do que se lhes pedia e deles se esperava e que, como tal, não aconselha mais adjectivos ou encómios supérfluos, bastando antever-se que figurará, sem dúvida, na lista dos melhores concertos de 2009.
Por último, seja-me permitido adiantar a necessidade de uma reflexão profunda sobre o que se pretende venha a ser, no plano musical, este (em boa hora regressado) Cascais Jazz, no sentido de que possa vir a estar à altura (de uma outra maneira, à maneira dos nossos dias) do histórico evento que muito marcou tantos de nós.
Declaração de interesses: o escriba de O Sítio do Jazz é o autor de alguns dos textos insertos no programa do Cascais Jazz 2009
A encerrar o ano, Um Toque de Jazz escolhe uma série especial de concertos que na sua maioria terão, como protagonista musical central, a excelente Big Band da Rádio de Frankfurt (Alemanha), com vários solistas convidados, como por exemplo o pianista francês Martial Solal, o cantor norte-americano Mark Murphy ou o duo português Maria João-Mário Laginha.
Nas primeiras partes desses concertos actuarão o quarteto do pianista Cedar Walton (EUA), o noneto do saxofonista-alto Klas Linqvist (Suécia) e o trio do pianista Bobo Stenson (Suécia).
Finalmente, como já vai sendo tradicional, está reservado Toast to the Nation para o último domingo do mês, ou seja, os concertos de fim de ano (2008/2009) realizados em vários clubes de Leste a Oeste dos EUA e produzidos pela NPR – National Public Radio, o serviço público de radiodifusão norte-americano.
Um Toque de Jazz é transmitido aos domingos, das 23:05 às 24:00, na Antena 2, podendo ser ouvido em FM ou ainda aqui, via webcast. Após a sua transmissão, os programas passam a estar disponíveis, também via Internet, napágina de arquivos multimédia da Antena 2.
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Domingo, 06.12.09 – Concertos Internacionais (1): o Quarteto do pianista norte-americano Cedar Walton (com o convidado Javon Jackson, sax-tenor) na Brücknerhaus de Linz (Áustria) em 02.12.08; e o cantor Mark Murphy (EUA) com a Big Band da Rádio de Frankfurt na Casa da Rádio (Frankfurt, Alemanha) em 09.03.07. Gravações Eurorádio.
Domingo, 13.12.09 – Concertos Internacionais (2): o Noneto do saxofonista-alto sueco Klas Linqvist na Lava Kulturhuset (Estocolmo) em 02.02.08; e o pianista francês Martial Solal com a Big Band da Rádio de Frankfurt na Estação Central de Darmstadt (Alemanha) em 04.04.08. Gravações Eurorádio.
Domingo, 20.12.09 – Concertos Internacionais (3): o Trio do pianista sueco Bobo Stenson na Hörsalen da Kulturhuset (Estocolmo) em 05.04.08; a cantora Maria João e o pianista Mário Laginha (Portugal) com a Big Band da Rádio de Frankfurt na Staatsschauspiel (Dresden) em 18.11.07.
Gravações Eurorádio.
Domingo, 27.12.09 – Concertos Internacionais (4) – “Toast to the Nation: a noite da passagem de ano 2008/2009 em vários clubes dos EUA, com Hiromi Sonicbloom, Dizzy Gillespie All-Star Big Band, New York Voices, Mingus Big Band, etc. Gravação NPR para a Eurorádio.
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